Ela suspirou. A voz profunda e feminina reverberava pelas paredes da caverna. Cada passo que ela dava ecoava com o metal, clang, clang, clang. A armadura vazia andava como gente, e da sombra do lugar em que seus olhos e boca deveriam estar, vinha a voz.
- Ninguém virá para te resgatar. Ninguém é resgatado nesta vida. Jaz aí morta. Morta dentro de mim, dentro da armadura que criou. E aí ficará, e aí perecerá, se não resgatar a si mesma.
Com a voz rasgada e rouca de uma idosa, a magra menina, quase esquelética, de pele pálida e olhos fundos, caída sobre as pedras do chão, o cabelo castanho espalhado pelas rochas úmidas, respondeu:
- Minha velha amiga, não pode mais me levar?
- Não. Nunca te levei. Sempre foi você que me levou. Você que me ergue em seus ombros. Nunca a carreguei. Foi seu espírito que me forjou, necessitou de mim pela proteção. Mas não há como eu acompanhar-lhe: está fraca demais. E sei que apesar de sentir-se melhor comigo, se continuarmos, você me carregando, não aguentará. E não se resgatará.
- Mas a batalha ainda está em mim, Alluar.
- E é este o problema e a solução: Está EM você. Dentro de você. Eu sou feita para as batalhas de fora. Se servir-lhe numa batalha interna, jamais vencerá. Estará lutando contra si mesma e protegendo-se de si mesma. Mas não pode lutar as batalhas de fora sem antes encerrar a de dentro. E não poderá lutar as de dentro se se arrasta com meu peso pelas batalhas de fora.
Uma única gota botou de um dos olhos da garota magra. Rolou lentamente sobre a sequidão do que antes eram cheias faces rosadas.
- Está me pedindo para te abandonar. Não sei fazer isso. Como posso fazer isso? Sem você, estarei por fim completamente sozinha.
- Você em mim está completamente cega. Passou as últimas noites culpando-me, mas sabe muito bem que está pendurando-se em mim, pondo em mim seus erros, sendo que você me fez, e faz-se crer dependente de mim.
- Disso já me desculpei, mas sabe que passei a vida com você...
A armadura vazia marchou a passos duros até a garota, ajoelhou-se ao lado dela e pousou uma das luvas de metais em seu ombro.
- Passou a vida comigo porque você me É. E eu lhe sou. Somos uma só. Me chama de irmã, mas você me é.
- Está aí mais um motivo: Não sei ser sem você.
- Não. Você sabe muito bem ser sem mim. Vive me desmontando nos momentos mais inconvenientes. Acaba se machucando. E nunca protesto. Porque sem sentir, você não viverá. Mas já faz tempo demais que não me tira. Não sente mais nada. Não vive. Por isso está definhando.
Virou e sentou-se ao lado dela.
- Não sei mais dançar.
- Temo ter que concordar. Não, não sabe.
- Eu sabia dançar. Sabia ouvir a música, até mesmo a música do silêncio. Sabia quando lutar e quando dançar. Sabia quando brandir a espada ou quando rodopiar. Pouco importava onde estava. Podia estar sozinha, mas sozinha nunca estava. Havia o universo... Havia as estrelas, a noite e o vento. Agora só há esta caverna, onde me enfiei, dentro desta armadura, nesta escuridão, num silêncio que é muito mais vácuo e muito menos música. Nada me alimenta. Tudo é vazio.
- Não sabes dançar nem consigo, nem no universo, nem comigo.
A armadura levantou. Estendeu-lhe a mão.
- Não consigo...
- Consegue sim. Venha. Vamos abrir a janela.
O peito da magra criança subiu sob os farrapos. Uma, duas, três vezes. Subia e descia num lento e doloroso ritmo. Ela conseguiu levantar um dedo.
Somaram-se as pequenas arfadas ao esforço dos finos músculos. Às rangidas das juntas da armadura. Ao raspar dos ossos. Aos pés e botas nas pedras. Harmonizou-se o mundo. Ela levantou com auxílio da dama de metal.
Parou em pé diante da armadura oca. Suas mãos ossudas posavam sobre as mãos de ferro, sem apoiar-se. Como uma pluma num galho.
- Vamos. A janela.
Levaram o que parecia horas para chegar ao círculo de pó na parede. A armadura tentou varrer o pó com as luvas de aço, mas elas apenas arranharam o vidro sob a sujeira, sem nada limpar. A garota olhou desapontada para a face oca dela. E franziu o cenho.
A garota tomou a luva da armadura num piscar de olhos. Vestiu-a em suas mãos. Flexionou os dedos de metal na ponta de seu braço magro.
E com um estrondo, atravessou a janela com o punho.
A luz da lua atravessavou a nuvem de pó, e o vento que invadiu a caverna em segundos varreu-lhes a vista. Quando enxergaram outra vez, a noite se abria à sua frente.
Ela tirou a luva de metal e devolveu-a à armadura. A armadura recolocou a luva em seu braço.
Estendeu-lhe outra vez a mão.
E dançaram o silêncio por uma nova eternidade.
A.G.
20/09/2013